“É uma charada, envolta em mistério, dentro de um enigma.”
Essa foi a famosa descrição que Winston Churchill fez da Rússia de 1939 quando perguntado sobre as intenções e interesses da nação. “Eu não posso prever as ações da Rússia”, ele reconheceu. Então ele adicionou sua provocação.
Ao decorrer dos anos, muitos buscaram aplicar a fala memorável de Churchill a outros enigmas, como maridos admitindo (comicamente ou com genuína humildade) a sua incapacidade de compreender os cativantes mistérios de suas esposas.
No estudo do Novo Testamento, essa fala pode ser aplicada apropriadamente à epístola aos Hebreus, uma das mais enigmáticas dentro desse campo de enigmas contínuos. Romanos e Hebreus, de extensão similar, podem ser consideradas epístolas que são pilares da teologia cristã, e, ainda assim, muito mais é conhecido e certo sobre Romanos. Em Romanos, nós temos o coração sistematicamente racional de Paulo. Em Hebreus, nós temos outra voz instruída, poderosa e complementar — mas a voz de quem? Voltando-nos a Hebreus, vemos a estranha figura de Melquisedeque e o argumento complexo do capítulo 7, as passagens de advertência no capítulo 6 e 10, e a série de abertura de citações do Antigo Testamento no capítulo 1, que muitos leitores possuem dificuldade de entender em contexto.
William Lane começa o seu impressionante comentário de dois volumes com esse tributo: “Hebreus é um deleite para quem gosta de quebra-cabeças. A sua forma é incomum; seu cenário, incerto e seu argumento, pouco familiar. Ela convida a engajar-se na tarefa de definir o indefinido”.
E o maior enigma de todos é a informação que a história da igreja e os fiéis hoje não consideram faltar para nenhum outro documento do Novo Testamento: quem o escreveu?
Poderia ser Paulo?
Diferente das epístolas de Paulo — e de todas as outras cartas do Novo Testamento, exceto as epístolas de João —, Hebreus não começa com o nome do seu autor, nem divulga o seu nome em qualquer lugar ou dá dicas reveladoras sobre sua identidade. A informação mais próxima que temos é a menção de Timóteo, como companheiro, ao final: “O irmão Timóteo foi posto em liberdade” (Hebreus 13.23). Assumindo que esse seja o Timóteo que conhecemos de Atos 16–20 e das epístolas de Paulo (e especialmente as duas cartas endereçadas a ele), o autor de Hebreus parece estar dentro do círculo de Paulo. Assim, a pergunta tem sido, há muito tempo: poderia ser o próprio Paulo?
Quando consideramos a história do reconhecimento de Hebreus no cânon cristão, nós não podemos ignorar a suposição inicial de que era de Paulo. Os registros existentes não são extensivos, mas a igreja oriental amplamente aceitou Paulo como autor de Hebreus. No entanto, a aceitação foi mais lenta no ocidente, apesar de sua solidificação a partir do tempo de Agostinho (354–430) e Jerônimo (347–420). O surpreendente alto grau da cristologia da epístola se provou valioso no combate à heresia ariana, que confessava Cristo como mera criatura, não Deus eterno. A canonicidade de Hebreus permaneceu inalterada no final do quarto século. Paulo era, presumidamente, o autor.
No milênio seguinte e além disso, essa posição permaneceu essencialmente inquestionada enquanto muitos liam a Escritura em latim. Porém, novas consultas começaram a surgir na Reforma, conforme estudiosos voltavam ad fontes (de volta às fontes), liam o grego por si próprios e se tornavam confortáveis o suficiente no entendimento do Novo Testamento para identificar fortes diferenças entre o típico estilo de Paulo e o de Hebreus.
Alguns estudiosos, se apegando à autoria paulina, tentaram várias explicações para as diferenças de estilo manifestadas. Talvez Paulo tenha escrito em hebraico e, pode-se dizer, Lucas traduziu a carta para o grego. Ou talvez Paulo seja coautor, juntamente com outro membro do grupo dos apóstolos. Talvez o copista de Paulo tivesse mais liberdade do que o normal, dando a essa epístola um estilo distinto quando comparado às suas outras treze cartas. (Tal raciocínio é suficiente para as diferenças mais moderadas das epístolas pastorais, mas não para Hebreus.)
Ainda assim, o melhor argumento contra a autoria de Paulo está na própria carta.
Não é Paulo
Muito embora o autor de Hebreus não deixe seu nome, ele se refere a si mesmo em uma declaração reveladora no começo do capítulo 2 — e, ao fazer isso, ele fala de uma forma que podemos reconhecer, com boa autoridade, que o apóstolo Paulo enfaticamente não falaria.
Falando do evangelho cristão (e da nova aliança em contraste com a antiga) como “uma grande salvação”, o autor escreve: “A qual, tendo sido anunciada inicialmente pelo Senhor, foi-nos depois confirmada pelos que a ouviram” (Hebreus 2.3). Perceba, cuidadosamente, três grupos em foco aqui. Primeiro, “o Senhor” Jesus. Ele não apenas veio como a grande salvação, e para realizar a grande salvação, mas ele a anunciou. Ele mesmo pregou, ensinou e a declarou. Então Hebreus menciona um segundo grupo: “aqueles que ouviram”: aquela primeira geração de apóstolos e cristãos, que seguiram a vida de Jesus, testemunharam sua morte, viram-no ressurreto e creram. Eles viram, conheceram e ouviram Jesus por si próprios. Então o autor de Hebreus se coloca em um terceiro grupo: “foi-nos depois confirmada pelos que a ouviram”.
Baseado no que Paulo escreve em outros lugares, e como ele raciocina e entende seu chamado como um apóstolo de Cristo, Paulo não se colocaria nesse terceiro grupo, o qual recebeu a mensagem através de outro grupo e não a recebeu diretamente pela boca do Senhor. Por exemplo, Paulo escreve à igreja da Galácia a respeito do evangelho que ele prega: “Porque eu não o recebi, nem o aprendi de homem algum, mas mediante revelação de Jesus Cristo” (Gálatas 1.12). É crítico para Paulo, como um apóstolo “nascido fora de tempo” (1 Coríntios 15.8), que ele tenha conhecido o Cristo ressurreto face a face na estrada para Damasco e recebido a verdade, e a sua comissão, do próprio Cristo.
Dessa forma, Hebreus 1.2 leva muitos estudiosos pós-Reforma a dizer, juntamente com Lane, sobre o autor: “É certo que não seja Paulo.”
Quem poderia ser agora?
J.A.T. Robinson (1919–1983) comenta em seu livro de 1976, Revisando a Datação do Novo Testamento, sobre o autor de Hebreus:
O legado do apóstolo [Paulo] em parte caiu sobre o próprio autor. Ele pode falar aos seus leitores com uma autoridade pastoral superior a seus próprios líderes e com uma clara consciência dos envolvimentos locais (Hebreus 13.17) e, ainda sim, sem nenhuma reivindicação pessoal de uma égide apostólica. Não existiram muitos homens assim naquela época.
Muitos concordam que estamos lidando com um número muito limitado de candidatos, mesmo que não possamos afirmar saber esse número com certeza.
Tertuliano (160–220) sugeriu Barnabé, que foi companheiro de Paulo no triunfo do evangelho na primeira viagem missionária (Atos 13.1–15.35). Alguns têm se perguntado se a referência final do autor na epístola sobre uma “palavra de encorajamento” (13.22) não seria uma alusão ao nome Barnabé, “que significa filho do encorajamento” (Atos 4.36). No entanto, Paulo e Barnabé não permaneceram no mesmo círculo indefinidamente. Os dois tiveram um “grave desentendimento” e “se separaram” (Atos 14.37–41), antes que Paulo conhecesse Timóteo (Atos 16.1).
Outros sugerem Silas (Silvano), que escreveu, junto com Paulo e Timóteo, 1 Coríntios e 1 e 2 Tessalonicenses (e também ajudou em 1 Pedro). Memoravelmente, Martinho Lutero sugeriu Apolo, que parece ser “o tipo de pessoa que escreveu Hebreus”. Atos 18.24 descreve Apolo como um judeu natural de Alexandria, “homem eloquente e poderoso nas Escrituras”. Entretanto, a comitiva dos pais da igreja primitiva da cidade de Alexandria não menciona Apolo como uma possibilidade. A igreja de Alexandria teria esquecido que um deles seria autor de tal obra-prima?
No fim, as sugestões de que seria Barnabé, Apolo e Silas encontram o mesmo destino: nós não temos amostras escritas deles para comparar. No entanto, temos um candidato adicional para mencionar do qual temos uma extensa quantidade de escritos – e, mesmo assim, ainda não é conclusivo.
Alguém como Lucas
Um dos primeiros nomes a ser sugerido durante a história da igreja foi Lucas. Orígenes de Alexandria (c. 184–253) achava a teologia da epístola complementar à de Paulo, mas com estilo claramente diferente do dele (“o estilo verbal da epístola… não é rigoroso como a linguagem do apóstolo… porém ele emprega um grego mais puro”). Orígenes considerava a possibilidade de ser Lucas ou Clemente de Roma (c. séc. 35–99; não confunda com Clemente de Alexandria, c. 150–215). João Calvino (1509–1564) e o hebraísta alemão Franz Delitzsch (1813–1890) fizeram registros favorecendo a autoria de Lucas.
B.F. Westcott (1825–1901) reivindicou em seu comentário de Hebreus que “nenhum estudante imparcial pode deixar de se impressionar com o uso frequente de palavras características de São Lucas”. Henry Alford (1810–1871) também ficou impressionado: “Os leitores desse comentário frequentemente se impressionarão com as coincidências verbais e idiomáticas com o estilo de Lucas–Atos”. Muitos se juntaram a eles ao observarem “semelhanças no estilo” ou “similaridades estilísticas.”
Mais recente, o professor David Allen, do Southwestern Seminary, publicou uma monografia inteira em 2010 intitulada Autoria Lucana de Hebreus. De fato, há um argumento a favor de Lucas. Estudantes que avançaram o suficiente em grego koiné para conhecer bem Hebreus, e que depois leram Lucas–Atos, perceberão similaridades entre expressões, ressaltam Alford e Westcott. Claramente, tanto Lucas–Atos quanto Hebreus pertencem a um nível mais elevado de grego do que o restante dos documentos do Novo Testamento. Se começarmos com autores conhecidos dos livros do Novo Testamento, como Allen sugere, então Lucas parece ser a escolha mais correta. E, se nós pudéssemos contar Lucas como o autor, de maneira confiável, nós o teríamos como autor de aproximadamente um terço de todo o Novo Testamento (e talvez também como copista de Paulo em 1 e 2 Timóteo e Tito).
Entretanto, nós não estamos limitados a autores conhecidos, e, assim como o próprio Allen concebe em seu comentário, o máximo que podemos afirmar é que “alguém como Lucas deve ter sido o autor”. Lane captura uma humilde verdade: “Os limites do conhecimento histórico impedem a identificação positiva do escritor”.
Preenchendo o cânon
Então, a questão que resolve as charadas sobre o autor da epístola é a canonicidade: se não conseguimos estabelecer a identidade do autor de forma convincente, podemos, racionalmente, receber Hebreus como parte do cânon do Novo Testamento e da Sagrada Escritura? Podemos recebê-lo como regra, ou régua de medir, da nossa fé?
A igreja, como um todo e ao longo do tempo, teve relativa certeza com relação à autoria de todos os outros livros do Novo Testamento. Dos 27 livros, 21 foram escritos por Paulo (13) e por membros do grupo dos doze apóstolos originais de Jesus, Mateus (1), João (5) e Pedro (2). Além disso, conhecemos a identidade de outros quatro autores do Novo Testamento claramente associados a Cristo e seus apóstolos: Marcos escreveu seu evangelho em associação a Pedro; Lucas escreveu o seu e Atos como companheiro de Paulo; Tiago e Judas eram (meio) irmãos de Jesus (Mateus 13.55; Marcos 6.3; Gálatas 1.19; Judas 1), tendo Tiago, em particular, servido proeminentemente na liderança da igreja primitiva (Atos 12.17; 15.13; 21.18; 1 Coríntios 15.7; Gálatas 2.9). O apostolado, podemos dizer, está no centro da canonicidade, mas não em totalidade. Por essa razão, muitos têm falado de “apostolicidade” e aplicado o adjetivo apostólico amplamente.
Hebreus, então, nos empurra um degrau adiante. Se foi escrito por Lucas, nós não temos mais nenhuma preocupação adicional, já que seu evangelho e Atos são reconhecidos sem questionamentos. Mas, já que permanecemos incertos sobre a autoria de Lucas, ou já que suspeitamos de outro autor que não seja um apóstolo ou um associado próximo, é necessário raciocinar um pouco mais.
Na verdade, nós podemos ter evidências suficientes para considerar como autor de Hebreus um associado de Paulo e um membro do círculo paulino, já que Hebreus 13.23 se refere “ao nosso irmão Timóteo”, que parece ser bem conhecido do escritor e seus leitores. Porém, não precisamos fingir ter mais convicção do que temos. A incerteza pode nos servir bem. Ela nos pressiona a responder à questão da canonicidade por outros meios: não pela identidade do autor, mas pela glória de Deus que resplandece em toda a Escritura.
Encontro sobrenatural
John Piper argumenta algo que se aplica muito bem a Hebreus. Apoiando-se em 1 Coríntios 2.11–13 (“nós [apóstolos] transmitimos [a vontade de Deus] em palavras… ensinadas pelo Espírito, interpretando verdades espirituais para os que são espirituais”), Piper escreve:
Apostolicidade é a transmissão sobrenatural, para pessoas com discernimento espiritual, de realidades naturalmente incompreensíveis (“os que são espirituais”, 1 Coríntios 2.13), através de escritos que são “ensinados pelo Espírito”. Isso significa que o reconhecimento, pela igreja, da apostolicidade dos 27 livros do Novo Testamento não foi um mero julgamento histórico sobre quem escreveu os livros ou uma mera preferência de alguns por outros. Ao contrário, os julgamentos históricos e as preferências coletivas foram o trabalho externo de um encontro sobrenatural entre o trabalho único de Deus nos escritos (“palavras que não foram ensinadas por conhecimento humano”) e cristãos possuídos de discernimento providencial e dotados do Espírito Santo (“interpretando verdades espirituais para os que são espirituais”).
Esse “encontro sobrenatural” entre Cristo e sua igreja, confirmado por gerações, é a chave. O desfecho sobre como essa dinâmica se relaciona com Hebreus é que a epístola, mesmo sem a identificação do seu autor, manifesta a glória peculiar de Deus em Cristo para o seu povo, e, como Michael Kruger escreve, “carrega um depósito apostólico essencial”. A.T. Lincoln resume: “Na providência de Deus, a igreja católica ouviu corretamente em Hebreus o evangelho apostólico que com poder testemunha a ação decisiva de Deus em Cristo e suas implicações para a fé e a vida”. A isso eu acrescentaria, juntamente com Piper, que no testemunho a igreja tem visto, por séculos, e continua a ver, não apenas verdade, mas beleza, a glória auto-autenticada de Cristo.
Só Deus sabe
A afirmação de Orígenes no terceiro século sobre Hebreus permanece: “Quem escreveu a epístola, em verdade, Deus sabe”. Não temos certeza sobre seu nome, mas podemos supor alguns detalhes importantes sobre “o tipo de pessoa que escreveu Hebreus”, quem quer que fosse esse “alguém como Lucas”. Apesar de não ser o próprio Paulo, o autor era parte do círculo apostólico, conhecido pelos leitores próximos de Paulo e Timóteo. Ele provavelmente tinha conhecimento judaico, com educação e treinamento helenista.
Acadêmicos uniformemente admiram o seu grego: “um mestre de grego elegante”; “o estilista mais elegante entre os escritores do Novo Testamento”; “o melhor grego do Novo Testamento, muito superior ao padrão paulino, seja em vocabulário ou em construção semântica”. Andrew Trotter reivindica: “A escrita de Hebreus é, facilmente, a melhor no NT, seja em seu uso da gramática e vocabulário ou em seu estilo e conhecimento das convenções da retórica grega”.
No fim, muito mais importante do que termos o seu nome é termos a carta que o Cristo ressurreto soprou para a sua igreja através desse homem.
Olhe para a recompensa
Do começo ao fim, Hebreus ressoa um refrão consistente, como muitos notam: Jesus é melhor. Não apenas como Deus, mas agora como homem, ele é superior aos anjos (1.4; 2.9–10), “digno de maior glória do que Moisés, da mesma forma que o construtor de uma casa tem mais honra do que a própria casa” (3.3). Melhor do que Josué (4.8–10), melhor do que Davi e Arão e Melquisedeque, ele provê uma esperança melhor (7.19) através da mediação de uma aliança melhor (7.22; 8.6). Ele preparou para nós um país melhor (11.16) e irá nos ressuscitar, depois da morte, para uma vida melhor (11.35). Algumas partes da carta podem parecer estranhas, mas nós somos chamados, de novo e de novo, sem charadas, a olhar para frente, em busca do contentamento real e duradouro.
Qualquer que seja o padrão de comparação, Jesus é melhor. Ele mesmo é a nossa posse permanente, nossa melhor e maior recompensa (10.34–35). Hebreus nos convoca a buscar essa satisfação santa, para conhecermos nosso Deus como aquele que “recompensa aqueles que o buscam” (11.6), para nos libertar de nosso apego aos tesouros desta era “olhando para a recompensa” (11.26), para “considerar Jesus” (3.1) e corrermos com perseverança “olhando para Jesus … o qual, em troca da alegria que lhe estava proposta, suportou a cruz” (12.1-2).
Podem existir charadas, mistérios e enigmas em Hebreus, mas sua visão e seu valor nunca foram colocados em xeque.
Autor: David Mathis
Fonte: Voltemos ao Evangelho
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