Quando se quer impingir, denegrir e destruir, um expediente antigo e primitivo é apelidar e rotular. Em época de eleições, os apelidos e rótulos se multiplicam. Nas atuais, eles estão por todo lado, e desta feita nas pequenas e grandes telas de um número inédito de brasileiros pequenos e grandes, como “nunca antes se viu na história deste país”. Apelidos como “chuchu”, “nanico”, “poste”, “jumento” e “bozo” não pretendem ir muito além do que a milenar função – um xingamento, uma caricatura, uma pecha. Isto não quer dizer que os apelidos sejam totalmente destituídos de alguma materialidade… “Cabeção”, “narigão”, “esqueleto”, “palito” e “rolha de poço” podem remeter, sim, para alguma característica saliente ou marcante. Porém, o apelido em si mesmo seria um tipo repisado de bullying — anglicismo atual que chama a atenção para a prática juvenil, cuja intenção é desmerecer, produzir violência física ou psicológica, causar dor e angústia, e, se for possível, ridicularizar o apelidado diante da sensibilidade e hostilidade pública.

Aplicando o Sermão do Monte

No Sermão do Monte, Cristo oferece a sua interpretação correta da lei, em contraposição àquela dos fariseus e escribas. Isto é algo importante, pois não se trata de um conflito entre Jesus e Moisés. O conflito naquela unidade do sermão é entre a “justiça de Deus” e a “justiça dos fariseus e escribas”. “Será que eles realmente cumprem a Lei?” “Eles podem legitimamente se proclamar, se reivindicar justos?” Cristo submete a exame a interpretação que os líderes religiosos judeus faziam da Lei, oferecendo uma interpretação essencial para a mesma.

É em tal contexto que Cristo oferece a sua interpretação para o sexto mandamento, “Não Matarás”.  Jesus Cristo salienta que, no que diz respeito àquele mandamento, a interpretação dos escribas e fariseus se limitava a condenar o homicídio propriamente dito (Mt 5.21). Ele recupera a essência do sexto mandamento, que é a proteção da vida, informando-nos que a lógica da transgressão ao mandamento é o desejo de destruir o outro. Há um ódio básico aqui. “Eu, porém, vos digo que todo aquele que [sem motivo] se irar contra seu irmão estará sujeito a julgamento; e quem proferir um insulto a seu irmão estará sujeito a julgamento do tribunal; e quem lhe chamar: Tolo, estará sujeito ao inferno de fogo.” (Mt. 5.22, ARA).

No original neotestamentário, o que se tem é isto: “E qualquer que disser a seu irmão: Raca, será réu do sinédrio”. “Raca” era uma palavra aramaica, um insulto, um impropério. “Inútil”. Quando o outro é igualado a coisas inúteis e desprezíveis. É como dizermos que “ele é pior que as fezes”, ou dizemos aprioristicamente que a mãe dele é uma prostituta… Ou quando usamos um termo chucro para dizer que queremos que ele seja violentado sexualmente. O que queremos quando xingamos alguém? Jesus Cristo pede para que consideremos se, no xingamento ou insulto, o que nos mobiliza é o desejo de destruir o outro. “E qualquer que lhe disser: Louco, será réu do fogo do inferno”. É interessante, pois no sermão de Cristo há instâncias crescentes de juízo: o tribunal local, a seguir o sinédrio, o supremo tribunal dos judeus, e por fim Deus, que pode condenar ao inferno.

Há ainda uma outra gradação: Como se destrói o outro?  Inicialmente dentro de nós, e depois exteriorizando por meio de linguagem e atitudes, e por fim, destruindo a sua honra e reputação. O ensino bíblico é o de que há, com certeza, algumas instâncias em que se pode legitimamente chamar alguém de “tolo” e “louco”. Deus faz isto. Em diversos lugares da Bíblia isto é feito legitimamente. Mas na interpretação oferecida por Cristo no Sermão do Monte, o que se tem é a intenção de devastar com a reputação, acabar com a honra, destruir o nome. A fonte de onde brota a intenção está decididamente poluída.

O aspecto essencial da Lei

Em resumo, ensina Cristo que eu posso odiar uma pessoa, em termos práticos, sem todavia cometer um homicídio de fato. Eu não peguei uma “arma de fogo” ou uma “arma branca”… Não fui como o brasileiro Adélio, que manejou a faca literalmente. Mas no fim das contas, o mesmo princípio e lógica que conduzem ao homicídio estão em operação aqui: um ódio prático, um desejo de que o outro seja prejudicado, destruído.

Em nosso movimento básico e fundante de autojustificação, tendemos a nos inocentar no tribunal de nossa consciência, ao mesmo tempo em que culpabilizamos o outro. Os escribas e fariseus agiam assim. Lidavam com o homicídio, e até mesmo reivindicavam (reclamavam) o julgamento para o homicida. E isto estava correto. Porém, isto era feito de uma maneira tal em que não se confrontava a perversidade, o mal que levava aos homicídios… E menos ainda este mal em si mesmos! Cristo diz que a justiça deles não se sustentava nem no tribunal local, nem no tribunal do sinédrio (integrado por eles mesmos), e menos ainda no tribunal de Deus. No fim das contas, eu não assassinei o meu próximo. Mas dentro de mim, eu quero a sua morte. A vida seria melhor sem ele. Já o julguei. Já o condenei. Eu mesmo medi a extensão da lei, fiz a autodefesa, procedi à acusação e fui o juiz. Cristo, por sua vez, “veio cumprir toda a Lei”, cuja ideia básica é a de cumprir e cobrir toda a superfície, toda a extensão. Tem-se a ideia de completude, de se tomar a Lei por inteiro, em seu todo. A justiça dos fariseus e escribas focava em um aspecto exterior, e na verdade desprezava o princípio essencial.

O ódio nos “rótulos”

Nas leis civis brasileiras temos os crimes contra a honra: calúnia, difamação e injúria. Temos os danos contra a imagem. Os assédios morais proliferam. A internet é um ambiente fértil para tais atitudes. Neste contexto eleitoral, tais práticas se generalizaram e se banalizaram. Para além daqueles apelidos primitivos de nossos impulsos infantojuvenis, temos ainda o “rótulo”. Este vale como agressão, por conta de seu lugar na cultura, mas pode estar destituído de seu conceito, de sua raiz… Pode inclusive ser desconhecido, indefinido, vago ou difuso para a própria pessoa que o utiliza. Determinados termos acabam por perder seu sentido original e adquirem uma conotação pejorativa – o que é verdade inclusive dentro do Cristianismo.

Tais termos pejorativos são usados irresponsavelmente para rotular adversários políticos (e religiosos), e com generalizações injustas. Se pudermos, devemos sempre ajudar a esclarecer o que o termo significa. Assim, diante de rótulos como “racista”, “nazista”, “fascista”, “machista”, “fundamentalista”, “homofóbico”, “reacionário”, “preconceituoso”… é sempre sábio indagar da contraparte, a bem da honestidade: “O que exatamente este rótulo significa para você?” Não há dúvidas de que, quando se utiliza desta categoria de rótulos, pode-se passar por um paladino da moralidade, ou por um protagonista no debate cultural, ou por um centurião combatendo os bárbaros, ou por um cruzado investindo contra os infiéis… Mas também pode-se apenas ser um combatente político, que, de forma irresponsável ou desesperada, utiliza todo tipo de arma vil, ou ainda alguém que, no fim das contas, nada mais é que um hipócrita brandindo a espada do “politicamente correto”.

Em debates honestos — não raramente sacrificados nas guerras — é preciso delimitar adequadamente os conceitos utilizados. E uma vez justificado o “rótulo”, indagar: “Por quê você o utiliza em relação a mim, ou a determinada pessoa?”  Sem definir conceitos, fica-se apenas na mera agressão, e com este tipo de prática não se vai a nenhum lugar, no que concerne a honrar a realidade e a celebrar a verdade, que é, em rigor, o que realmente liberta e promove o bem.

Por trás do ódio

Talvez caiba lembrar, a esta altura, que o ódio não costuma ser a primeira coisa. O ódio geralmente vem precedido de algo. Quando alguém odeia você, é bom saber que algo veio antes. Algum sentimento (orgulho, inveja, etc), alguma atitude e até alguma pré-concepção… O mesmo acontece quando odiamos alguém. Algo ali nos incomoda. E toda vez que algo nos incomodar demais, será sábio indagar o porquê. Talvez isto revele algo significante a nosso próprio respeito. Ninguém é unânime, nem mesmo Jesus Cristo. Sempre haverá alguém que não gosta de você. Só que algumas pessoas vão manter isto dentro delas… Mas algumas vão além. Estas agridem gratuitamente, ou movidas por motivos amesquinhados. Elas atacam.

Como lidar com o ataque e agressão? Pode ser de ajuda reconhecer que você não é o responsável pela agressão do outro. Isto está no “colo dele”. A sua responsabilidade se estende até onde se estende o seu braço, a sua voz, a sua influência, a sua omissão. Você é responsável por suas intenções e ações, sejam elas boas ou más. Mas a reação e agressão vem do outro. Isto é dele. Foi assim com os escribas e fariseus, e também com outros religiosos, em relação a Jesus Cristo. No fim das contas, o problema não era (e nunca foi) Cristo. O problema residia em seus próprios corações perversos.

Não rotule, corrija e ajude

Por fim, cabe lembrar que há uma grande diferença entre corrigir o ato, ou o erro, ou a falsidade… e a atitude de rotular indefinidamente. Alguns pais ensinam este mau comportamento aos seus filhos, e estes crescem repetindo-o na vida. Alguns exemplos: O filho erra uma questão da prova, e o pai diz: “Você É burro”. O filho não cumpre uma ordem: “Você É malandro; você É desobediente”. O filho comete alguma atitude insensata: “Você não presta; você não vale nada”. O filho não levanta cedo, ou não vai bem na escola: “Você É um imprestável” (“raca”, vazio). Em vez da boa disciplina, isto apenas destrói. Trata-se apenas de uma descarga de ira. Pode ainda ser expressão de que não se consegue ser contrariado. O que eu quero é ajudar o meu filho ou minha filha? Aquele ato infeliz ou ruim o define? Talvez, ao contrário, poderia ter sido dito: “Você deveria ter sido mais atento aqui nesta questão da prova”. Ou: “Você não levou a sério a recomendação que eu dei a você a este respeito. Posso lembrar o que combinamos?” “Você não guardou o sapato, como eu pedi a você para fazer ontem à noite”.

Conclusão

Quando eu estico o elástico ao ponto de reduzir uma pessoa a algo que a denigre, de uma maneira tal que a defino de forma peremptória e cabal, pode ser que apenas não sei ser contrariado, não posso ser frustrado, não consigo fazer justiça ao ponto que realmente me incomoda. Este é o cerne da intolerância, no sentido mais reprovável do conceito. Pode ser ainda que, quando o Grande Tecelão fizer girar a “roda do tempo”, eu venha a queimar a língua, e que a minha “justiça severa” não era melhor do que aquela do fariseu hipócrita, que Cristo condenou em seu perscrutador e desconcertante sermão.

Autor: Gilson Santos

Fonte: Voltemos ao Evangelho