Durante o carnaval tive a oportunidade de falar a vários jovens sobre essa questão: o conhecimento nos afasta de Deus? A simplicidade do evangelho significa não estudarmos a fundo as Escrituras ou teologia? Na ocasião pude apresentar alguns aspectos culturais que nos levam a enxergar que sim, juntamente com alguns argumentos bíblicos mal interpretados ou intencionados que apontam para uma postura anti-intelectual na igreja. Abaixo segue algumas considerações sobre esses argumentos para refletirmos.

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O Cristianismo se baseia em fatos não em doutrinas

Sabemos que nossa salvação não está num conjunto de teorias ou ensino, mas nos vários fatos que marcaram e ainda marcam o plano de redenção divino. Por exemplo, não fomos salvos por um exato entendimento da doutrina da expiação, fomos salvos pela morte de Jesus ter acontecido como um fato real e histórico. Ao mesmo tempo, pense comigo, é a doutrina que dá sentindo ao fato. A doutrina lhe confere a base para que tenhamos fé no fato. Continuemos pensando, o fato de Jesus morrer não tem significado expiatório para nós se isso não for acompanhado pela doutrina de que Ele morreu para nossa salvação.

Quando você diz “Jesus morreu” está se referindo ao fato, mas quando diz “Jesus morreu para nos salvar” temos o fato mais a doutrina. Como o cristianismo só está completo na segunda frase, vemos que na nossa fé doutrina e fato são inseparáveis. O professor João Alves dos Santos definiu assim:

“A doutrina não salva, mas pode tornar o homem sábio para a salvação. Doutrina sem fato é mito, mas fato sem doutrina é mera história.” (João Alves – A Igreja Precisa de Teologia?)

Argumento 1. Jesus escolheu seus apóstolos pelo critério do pouco conhecimento

Esse argumento também é do tipo meio verdadeiro. Realmente aqueles primeiro 12 homens chamados por Jesus para serem apóstolos eram homens simples. Atenção, eu disse simples, não ignorantes. Precisamos ter cuidado nesse ponto. Na defesa de que esse é um fato e ponto final, caímos no erro de não analisar os fatos corretamente. Vamos ver algumas outras verdades que colaboram pra destruir esse argumento anti-intelectual.

  • Os apóstolos eram Judeus. Isso significa que nenhum deles era ignorante ao ponto de ter nenhum conhecimento da lei, salmos e profetas. Na cultura judaica a criança e adolescentes eram rigorosamente ensinados sobre o livro sagrado.
  • Os apóstolos, assim como os demais discípulos, foram ensinar e treinados diretamente por Jesus numa espécie de seminário integral. Os sermões como o sermão do monte, as parábolas, explicações das parábolas, momentos de oração e ceia eram ensinos de Jesus específicos para seus discípulos. Jesus estava doutrinando todos eles.
  • Quando Matias foi escolhido para assumir o lugar deixado por Judas Iscarioteso requisito era de que ele precisaria ter estado com Jesus e os apóstolos desde o dia do batismo de Cristo até sua ascensão (Atos 1:21-26) Por que? Para garantir que o novo apóstolos não fosse um novato, sem conhecimento e experiência. Jesus não estava mais lá para ensinar.

Assim percebemos que os homens chamados eram homens simples. Não tinham o conhecimento especial do evangelho como ninguém mais tinha e foram ensinados por Jesus. Eles não permaneceram os mesmos. Assim também não, quando chamados, somos chamados a aprender mais de Jesus, dia após dia.

Argumento 2. Os maiores inimigos de Jesus eram aqueles que tinham mais conhecimento.

Novamente temos uma meia verdade sendo tratada como plena verdade. Esse argumento se levanta contra os fariseus, conhecidos pelo seu grande conhecimento da lei e zelo por ela. No entanto, esse zelo se desenvolveu para um legalismo cego, onde a esperança final repousava sobre o cumprimento na lei e não na promessa bíblica do Messias. Por isso, devemos ter cuidado em generalizar o malefício do conhecimento com base no legalismo farisaico. Vejamos duas verdades que derrubam esse argumento:

  • O erro deles não estava no conhecimento em si e nem no zelo, mas por confiarem a reconciliação com Deus nessas coisas. O problema parte da mente e do coração não regenerado que retém esse conhecimento e deposita nele sua esperança. “Porque do coração procedem os maus pensamentos, mortes, adultérios, fornicação, furtos, falsos testemunhos e blasfêmias.” (Mateus 15:19)
  • Paulo era um fariseu e depois de sua conversão ele simplesmente não se esqueceu do conhecimento que tinha. Agora, com o coração novo e voltado para Deus ele usou o conhecimento de forma correta, não como sua esperança, mas para apontar da melhor forma possível para sua esperança. Quando ele fala que o que era ganhou virou perda diante de Cristo ele está se referindo a posição de confiar na carne e do seu orgulho, não do seu conhecimento. Paulo depois de cristo não se tornou ignorante, se tornou humilde.

Usei o argumento de Paulo como o último para encerrar esse ponto mostrando que a vida do apóstolo derruba essas duas idéias anti-intelectuais. Se a falta de conhecimento fosse o critério máximo de Jesus Paulo não teria sido escolhido, e muito menos seria o principal dos apóstolos. Vemos portanto que o problema do homem não é o conhecimento, mas sim o coração enganoso que se apega ao conhecimento como seu deus. Como Paulos, fomos chamados a sermos simples e humildes, não ignorantes e preguiços no pensar.

O Cristianismo se basei em vida, não em doutrinas

Esta é a segunda conclusão muito defendida nos dias de hoje. A ideia que o evangelho é vida é verdadeira, mas separar essa vida da doutrina é um passo para a morte. De novo temos um mentira sendo utilizada por ser uma meia verdade. Como já vimos nesse artigo, isso além de perigoso tem se tornando constante. Os que assim concluem o cristianismo costumam dizer que o evangelho é vivo, alegre, renovador, instigador,etc. Já a doutrina é fria, moribunda e parada. Entre os jovens não é difícil que a ache chata e desnecessária.

Outro ponto defendido por estes é que a vida do evangelho se manisfesta em se adequar a vida do evangélicos, ou seja, de estar em constante mudança para satisfazer o modo de viver e pensar de cada um. Assim eles defendem que a vida dirige a doutrina e não o contrário. O perigo de caminhar por esse caminho é realmente perigoso. Não encontramos na Bíblia essa divisão ou antítese, a não ser pela má interpretação de 2 Coríntios 3:6

“Ele nos capacitou para sermos ministros de uma nova aliança, não da letra, mas do Espírito; pois a letra mata, mas o Espírito vivifica

Esse é um verso que não traria problema se, justamente, o conhecimento bíblico fosse mais valorizado entre nós. Aqui temos o erro básico do versículo fora do contexto, além de uma ignorância teológica a respeito da lei ou da letra. A defesa de muito é de que esse versão separa a vida do espírto da morte da letra, ou seja, do conhecer lei e as escrituras. Muitos aqui vão além separando o agira do Espírito da doutrina bíblica e colocando a experiência mística espiritual como maior fonte de revelação viva do que a própria Palavra. Mais uma vez um ideia que facilmente seria rejeitada se o conhecimento bíblico fosse mais valorizado e buscado.

Eis a verdade desse texto: Se colocarmo dentro do contexto perceberemos que “letra que mata” está se referindo ao que foi escrito nas “tábuas de pedra” (v.3) juntamente com a esperança de reconciliação nos “nossos próprios méritos” (v.5) humanos em cumprí-la. Não há nenhuma maldição de morte contra o conhecimento da lei e muito menos uma separação do Espírto da Escritura. O que temos aqui, novamente, é o agir do Espírito que muda os coração prepotentes para corações humildes. A diferença da vida está no agir regenerador do Espírito, não no conhecimento intelectual da lei ou não. Sobre isso Calvino comentou:

Quanto ao fato de nos criticarem por apegar-nos demais à letra que mata, nisto mostram que não poderão escapar do castigo de Deus por desprezarem a Escritura. Porquanto claro está que nessa passagem Paulo combate os falsos mestres que, exaltando exageradamente a lei desvinculada de Cristo, faziam o povo afastar-se da graça do novo testamento, ao qual o Senhor tinha feito essa promessa: “Na mente, lhes imprimirei as minhas leis, também no coração lhas inscreverei”. Vê-se pois que a lei de Deus é letra morta e mata os que a seguem,quando está desvinculada da graça de Cristo e somente soa nos ouvidos, mas não toca o coração. Mas se o Espírito a imprime de fato na sede da vontade, e se ele nos comunica Jesus Cristo, a Escritura é de fato a Palavra da vida, converte as almas e dá sabedoria aos símplices. (João Calvino, As Institutas – livro 1, pag 77)

O versículo citado por Calvino é interessantíssimo para essa discussão. A promessa de Jeremias 31:33 não é de acabar ou substituir a lei por algo mais vivo, mas de imprimir essa lei no interior, ou seja, mentes e corações do povo. A letra que mata é aquela que está apenas sobre a pedra ou livros, mas aquela recebida pelo coração e aceita pela mente gera vida, e isso só pode ser feito pelo Espírito Santo de Deus. A Palavra é viva e eficaz (Hb 4:12), assim como o conhecimento sobre ela no poder do Espírito! Busquemo essa vida enquanto buscamos conhecer ainda mais o Senhor. Não há desculpas para o crente não buscar os mais profundos tesouros da Escritura!

Você pode assistir a palestra completa no vídeo abaixo, com a introdução, explicação sobre os argumentos e aplicação prática.

Por Pedro Pamplona

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