A gente morre todo dia. E não somente daquela maneira que John Donne famosamente nos ensinou, com sinos dobrando por nós quando qualquer humano se vai. Tem um outro jeito que a gente morre todo dia.
Um dia desses li algo que partiu meu coração. Alguém disse algo mais ou menos assim: “Um dia você brincou com seus amigos de infância pela última vez, e ninguém na hora se deu conta disso.” Foi dessas coisas de arruinar o dia. De fato. A gente morre um pouco todo dia. A gente perde um pouco da vida a cada dia. Fiquei pensativo hoje lembrando disso. É verdade mesmo. A gente dificilmente sabe que foi a última vez.
Um dia você jogará bola pela última vez e será divertido e dolorido e você pensará que precisa fazer isso mais vezes. Mas não vai mais. Seja pelo joelho, pelas costas, ou pelo pouco tempo. Terá sido seu último gol, sua última canelada, sua última risada gostosa depois de um erro primário.
Um dia você irá ao cinema pela última vez. Vai ser provavelmente depois de um bom tempo sem ir… você vai gostar de sentir de novo o prazer da telona e vai pensar em voltar. Mas a vida vai seguir e logo a saúde vai dificultar muito. Vai ser tão mais fácil assistir no tablet.
Um dia você terá uma conversa com sua amada relembrando com carinho algum bom momento, como um dia de viagem ou uma refeição marcante. E algo acontecerá pouco depois que impedirá novas conversas desse tipo. E nunca mais vocês irão assoprar as chamas das memórias do amor um do outro… e aos poucos essas lembranças poderão se apagar. Você perceberá que era a última conversa? Por isso estava agridoce?
Um dia você vai se despedir de seu pai pela última vez e não mais poderá papear. E vai ficar muito por dizer. Vai ser assim com cada um de seus parentes, até que seja assim a seu respeito.
Um dia você irá fazer sua última postagem em mídias sociais. Se soubesse, não teria desperdiçado ela falando mal de alguém, teria?
Um dia você vai conhecer uma pessoa nova pela última vez, e provavelmente será um profissional de saúde que vai te ajudar a ficar confortável perto do fim.
Um dia você vai ouvir o seu último parabéns pra você. E dificilmente você saberá que foi o último. Ainda bem. Seria difícil soprar a vela, se soubesse.
Um dia você vai manchar sua camisa de comida pela última vez. Você vai ficar chateado. Se soubesse que seria a última, você se importaria? Ou pediria a mostarda?
Um dia você vai conhecer uma cidade nova pela última vez. Você saberia disso ao saborear as coisas únicas dali?
Um dia você fará carinho num animalzinho pela última vez. Se você soubesse, se demoraria mais nas orelhas peludas ou no focinho gelado?
Um dia você pagará seu último boleto. Se você soubesse, faria uma dancinha celebrando.
Um dia você assistirá sua última Copa do Mundo. Talvez ciente de que dificilmente você chegará em outra.
Um dia você vai sair de sua cidade pela última vez, e ao chegar de volta nem vai perceber que estará entrando para não mais sair.
Um dia você vai tomar chuva pela última vez, e bobo que é, vai ficar preocupado com uma nota de vinte que molhou, com pneumonia, com o sapato… e não vai aproveitar o milagre que é água caindo do céu.
Um dia você vai visitar sua avó pela ultima vez, ela vai te oferecer bolo, vai estar quase tão gostoso como sempre esteve. Um pequeno declínio qualitativo. Você vai sair triste mas esperançoso de que ainda terá ao menos outra visita, mas estará enganado.
Um dia você tomou sua última vacina e você reclamou com seus pais e você nem se deu conta que pronto, estava livre.
Um dia você se despediu de seus colegas de escola ou faculdade, e prometeram que com certeza manteriam contato.
Um dia você irá dirigir pela última vez, não vai ser uma épica jornada pela costa californiana, vai ser uma simples ida ao cartório. Seus familiares vão conversar contigo sobre não dirigir mais e daí em diante só carona.
Cada um de seus alimentos favoritos será comido pela última vez ao longo de seus últimos meses, mas você não irá saber que foi assim. Se soubesse, você teria focado mais na comida e menos no celular.
Um dia você vai ouvir uma de suas músicas favoritas pela última vez. Você não vai saber. Se soubesse, você teria cantado junto com vigor, não teria? Vai ser assim com cada uma de suas músicas favoritas, mas você não vai saber que foi.
Um dia você irá entrar no mar pela última vez. Você vai sair achando que ainda terá outra oportunidade. Se não achasse, aguentaria mais o frio, o sal no olho ou o rosto ardendo do Sol.
Um dia você vai notar a Lua e as estrelas pela última vez, certo de que a qualquer noite você poderia com facilidade ir contemplar o universo.
Um dia você vai terminar de ler seu último livro. Não terá sido um livro selecionado cuidadosamente para ser o último. Você não sabia. Será que vai ser um livro desses bonzinhos, mas nada de memorável? Ou a parte dois de uma trilogia?
Um dia você vai brigar pela última vez com a pessoa que ama. Talvez nem tenha chance de reconciliar-se. Se você soubesse, teria sido mais brando. Teria sim.
Um dia seu coração será partido pela última vez. Seja por uma notícia, seja por uma pessoa amada. Você vai achar que ainda irá passar por outras dessas, mas, felizmente, terá sido a última.
Um dia, depois que você se for, seu nome será dito pela última vez. Talvez por um bisneto curioso lendo algum papel antigo. Se chegar a tanto. E depois disso seu nome não mais soará na Terra.
Penso nessas coisas e meio que morro por isso. Um dia irei pensar nessas coisas tristes pela última vez. Que alívio. Ainda bem que há notícias de uma terra nova onde não haverá tantas lágrimas nas coisas. Os rumores, trazidos pelo bom livro, são de que lá nada precisará ser pela última vez.
– Emilio Garofalo Neto
Fonte: Voltemos ao Evangelho
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