Não sabemos quando Davi escreveu o Salmo 6. Ainda que isso não seja o aspecto mais relevante, é possível que Davi o tenha redigido no mesmo contexto do Salmo 3, quando fugia de Absalão ou, após o seu pecado com Bate-Seba, quando, aos poucos, Deus vai manifestando o seu desagrado para com o pecado do rei.

De qualquer modo, a impressão que se tem é que este Salmo foi redigido após o autor ter passado pela aflição descrita, por isso a sua exultação no final do Salmo, quando obteve a resposta e livramento divino.

Kidner (1913-2008), que o divide em duas partes, diz:

A oração de alguém que está profundamente perturbado e alarmado, ocupa a primeira metade do salmo. A segunda metade, a partir do versículo 6, não contém petição alguma: no início, há choro, mas, no fim, um irrompimento de fé desafiadora. As orações e as lágrimas não foram em vão.

Davi nos apresenta um quadro relativamente detalhado de sua situação. Ele se sente totalmente impotente, sem ânimo e forças para lutar.

salmista se diz doente: Debilitado (‘umlal) (Sl 6.2)figuradamente, “fraco”, “seco”, “murcho”, “desfalecido” e, com os ossos abalados (bahal) (2).

Ele fala também de suas angústias espirituais usando a mesma expressão que empregou para descrever os seus ossos. É como se dissesse: meus ossos e minha mente estão abalados. Essa expressão (bahal) é usada nas Escrituras para falar, do tremor dos ossos (Sl 6.2), da alma (Sl 6.3) e das mãos (Ez 7.27; 2Sm 4.1).

Corpo e alma em profunda aflição

Ele se sente totalmente, inteiramente, corpo e alma, em profunda aflição. Davi está angustiado, enfraquecido física e espiritualmente. Por isso, o seu senso de urgência: “mas tu, SENHOR, até quando?” (Sl 6.3).

O tempo sempre é longo quando a dor e a angústia nos dominam. Notemos também que o “até quando” faz sempre uma projeção distante.

Essa é uma pergunta de um coração em intensa agonia. A oração é, por vezes, a confissão de nosso senso de incapacidade diante dos problemas com os quais nos deparamos.

Como ele sabe que o seu livramento é impossível por si mesmo, e, ao mesmo tempo, considerando a gravidade de sua situação mesclada com a sua fé em Deus, clama ao seu Senhor: “Volta-te, SENHOR, e livra a minha alma; salva-me por tua graça (hesed)” (Sl 6.4).

Não é à toa que nos dez versículos desse salmo o salmista repete o nome de Deus 8 vezes, sendo que 5 delas nos quatro primeiros versos, onde a sua situação é mais tragicamente descrita.

Ele sente a morte aproximar-se (Sl 6.5). Está exausto, cansado de gemer. Esse cansaço além de associado à sua dor física e espiritual, relaciona-se também à sensação de que parece debalde o seu gemido (‘anachah) (Sl 6.6). Aliás, o gemido é resultante também de sua desolação.

O seu choro é contínuo e intenso (Sl 6.6-7). No entanto, parece que nada disso adiantava, e, a bem da verdade, nem Davi chorava com algum propósito específico.

Nessa descrição intensa, ainda que não meramente poética, vemos um homem profundamente triste e magoado, cujas lágrimas são constantes e incontroláveis nas horas da noite. Como disse Calvino: “A tristeza que domina a mente facilmente segue sua rota rumo aos olhos, e seguindo essa via concretamente se revela”.

Davi permanece insone e, por isso mesmo, parece prematuramente mais velho e com o consequente enfraquecimento de sua visão: “Meus olhos, de mágoa, se acham amortecidos, envelhecem por causa de todos os meus adversários” (Sl 6.7).

Aqui temos um Davi quase irreconhecível. Aquele pastor protetor de suas ovelhas, corajoso guerreiro, foragido, estrategista de pensamento tão rápido, tão bem acostumado aos desafios dos mais variados, agora se sente inerte e inerme: “Estou cansado de tanto gemer…. por causa de todos os meus adversários” (Sl 6.6-7).

O salmista se sente tão fraco que é incapaz de esboçar qualquer reação; ele apenas geme e chora. Aparentemente está totalmente entregue aos seus adversários.

Notemos que todas estas expressões servem para mostrar o quão intenso e totalmente debilitado está o salmista: corpo e alma; o homem integral está abalado. A sua alma treme mais do que o corpo: “a minha alma (nephesh) está profundamente (me`od) perturbada (bahal)” (Sl 6.3). A sua angústia, portanto, não é apenas física. O amor de Deus parece distante e a sua ira uma realidade presente. A sua aflição é maior do que todas as outras aflições.

Calvino interpreta:

Considerando o quanto Deus estava desgostoso com ele [Davi], viu, por assim dizer, o inferno escancarado para recebê-lo; e a fadiga mental que isso produz excede a todos os demais sofrimentos. Aliás, quanto mais sinceramente é um homem devotado a Deus, muitíssimo mais severamente perturbado é ele pelo senso da ira divina; e é por isso que as pessoas santas, que de outra forma são dotadas de inusitada fortaleza, têm revelado neste aspecto muito mais debilidade e necessidade de determinação.

É natural que perguntemos: o que causou esta dor tão intensa no salmista? O que ele fez para estar nesta situação? É justo o seu sofrimento? Vejamos então o que salmista mesmo diz?

Consciência do pecado

Ele pecou e tem consciência disso. Davi sabia que a fúria de Deus era resultante de sua desobediência. Reconhece o seu pecado; por isso dizer: “Senhor não me repreendas na tua ira, nem me castigues no teu furor” (Sl 6.1).

Davi tinha consciência de que era merecedor de repreensão e de castigo da parte de Deus. Ele sabia que o seu problema era com Deus – já que pecara contra Ele –, mas, também sabia que os homens eram seus agentes.

Uma das coisas mais difíceis de fazer é olhar os nossos pecados de frente e não tentar usar de subterfúgios, não buscar desculpas, antes encará-los para poder vencê-los. No entanto, esse é um ponto fundamental: o reconhecimento de nosso pecado.

Lloyd-Jones comenta: “Se você não reconhecer que, todo o tempo em que estiver nesta vida e neste mundo, haverá este terrível poder infernal dentro de você, ao seu redor e sobre você, então será um mero neófito nestes assuntos! (…) O primeiro passo é que o homem tem que reconhecer e confessar sua pecaminosidade”.

Davi então, confessou o seu pecado a Deus e encontrou o seu consolo em Deus: “Apartai-vos de mim, todos os que praticais a iniquidade, porque o SENHOR ouviu (shama) a voz do meu lamento; o SENHOR ouviu (shama) a minha súplica; o SENHOR acolhe a minha oração” (Sl 6.8-9).

Há nesse salmo uma nota vibrante de gratidão: O Deus misericordiosamente providente ouviu a voz do seu lamento e acolheu a sua oração. O salmista repete três vezes:

O Senhor ouviu a voz do meu lamento (bekiy) (8). – Enfatiza o seu estado emocional como resultado de sua dor.

 

“O Senhor ouviu a minha súplica (tehinnah) (9). – Enfatiza a situação de carência daquele que suplica, rogando, no caso, a graça de Deus.

 

“O Senhor acolhe (laqach) (toma para si) a minha oração (tephillah) (9). ‒ O aspecto predominante no emprego da palavra, especialmente nos Salmos, é a de petição por livramento, amparada na promessa de Deus.

Quanto às três declarações do salmista, comenta Agostinho (354-430): “A assídua repetição de uma sentença é desnecessária numa narração, mas demonstra o afeto de alguém que está radiante. Costuma assim falar os que se alegram, porque não lhes basta proferir uma só vez o motivo de sua alegria”.

A mudança de tom no salmo tem como ingrediente fundamental, a certeza de que Deus ouviu o seu clamor. Nessa certeza Davi se fortifica e, agora, não apenas como um crente restaurado, mas, também como rei, diz: “Apartai-vos de mim, todos os que praticais a iniquidade, porque o Senhor ouviu a voz do meu lamento” (Sl 6.8) (Ver Sl 101).

Autor: Hermisten Maia

Fonte: Voltemos ao Evangelho