Falar sobre a geração atual é uma tarefa por vezes inglória. Alguns conceitos que seriam considerados “senso comum” há alguns poucos anos e até dispensariam muita explicação, estão sob suspeita, sendo ressignificados num impressionante e assustador exercício de desconstrução de ideias que a gente vê hoje.
Quero refletir sobre algo que parecia senso comum há não muito tempo, mas que está agora sofrendo essa ressignificação, o respeito aos mais velhos.
Parece que vivemos um tempo em que os mais velhos representam um modo de pensar e fazer as coisas que não funciona mais em nossa sociedade (e, para nosso espanto, em algumas igrejas) e por isso é preciso se afastar deles (ou de nós). Meu assunto é breve e quero tratá-lo no contexto da fé cristã, pois minha preocupação é com o estado da igreja, quero dizer, o estado dos que professam fé em Jesus.
Uma enorme parcela de jovens da badalada geração “Z”, isto é, pessoas nascidas a partir de 1995 até agora, comanda uma patrulha implacável a tudo que se coloca no caminho da nova ética que o tal movimento “woke” estabeleceu como norma pétrea da sociedade. Esta nova ética é abrangente e incorpora praticamente todas as ideias que surgiram a partir das narrativas progressistas dos últimos 25 anos que dão novos parâmetros sobre o que significa viver bem em sociedade. A escalada de valores foi muito rápida, e, parece, depois da pandemia de 2020, passou a ser implementada de modo ainda mais agressivo. De áreas ligadas ao meio ambiente a questões complexas da medicina, das ciências, da política, da sexualidade, da psicologia e da religião, enfim, para tudo há uma nova norma que não aceita discussão. A sua imposição chega a ser violenta, seja pela cultura do cancelamento, muito forte no ambiente da imprensa e das redes sociais ou, ainda mais perigoso, como a gente vê nos governos do ocidente, pela criação de novas leis e jurisprudências que criminalizam a opinião e discussão de ideias. Pensar dum jeito antigo em pleno 2023 pode ser muito perigoso e até dar cadeia.
É curioso, no entanto, que o método desta nova ética se dê pela fragmentação da verdade, pelo fim do empirismo e do senso comum e pelo emprego de narrativas quebradas e desconexas de uma metanarrativa, em favor de um amplo pluralismo. Isto tem sido chamado de pós-verdade e significa que cada pessoa ou grupo social tem sua própria verdade e valores, os quais não podem ser jamais questionados.
É muito espantoso verificar que essa tendência alcançou também a igreja cristã. Muitos no meio do povo de Deus são fortemente influenciados por essa nova ética da pós-verdade e passam a confundir a ética cristã com as novas (e sufocantes) ideias que regulam a vida da sociedade ocidental neste século 21. Isto é forte nos EUA e Europa e chega com grande intensidade também ao Brasil, especialmente nos grandes centros urbanos, no meio universitário e nas redes sociais da internet. Alisa Childers, autora cristã norte-americana, tratou desse assunto em seu tocante testemunho publicado na forma de livro sob o título Outro evangelho? Uma resposta ao cristianismo progressista, publicado em português pela Editora Fiel e noutro livro ainda mais instigante, que já está em tradução, Live your truth (no prelo também pela Editora Fiel).
Mas divago com o desabafo. Deixe-me voltar ao ponto. Os mais velhos estão sendo cancelados em toda parte e isso acontece também na igreja. Por isso, vou primeiro trazer o princípio bíblico.
O quinto mandamento do decálogo, escrito pela própria mão de Deus (e pronunciado diante de toda comunidade redimida) diz: “Honra teu pai e tua mãe, para que se prolonguem os teus dias na terra que o Senhor , teu Deus, te dá”.
Neste mandamento, o povo de Deus é exortado a amar e obedecer aos pais. Um primeiro e importante elemento que deve ser destacado é que o mandamento não se dirige a crianças apenas, mas a todos quantos têm pais vivos (Pv 19.26; 23.22). Este mandamento, em distinção da maioria dos mandamentos do decálogo, é formulado em termos positivos e, ainda mais, é vinculado a uma promessa. Essa promessa tem à ver com efeitos da obediência. Como vemos nos textos de sabedoria da Bíblia, seguir bons conselhos de nossos pais, ouvir e respeitar os mais velhos, viver em paz com todos os homens, lidar respeitosamente com as autoridades, são atitudes que normalmente prolongarão os dias da pessoa e tornarão a vida mais fácil. Acrescente a isto o fato de que Deus mesmo promete abençoar aqueles que buscam cumprir o quinto mandamento e preservar seu espírito.
A expressão “honra” vem do hebraico kabod e tem um sentido de peso, importância, glória, prestígio. Trata-se do respeito que um inferior oferece a um superior. O Catecismo Maior de Westminster, na questão 126, propõe que o alcance do quinto mandamento é “o cumprimento dos deveres que mutuamente temos de uns para com os outros nas nossas diversas relações como inferiores, superiores ou iguais”.
Os reformadores foram além e até expandiram a compreensão deste mandamento a todos quantos têm posição de autoridade em relação a nós — primariamente e imediatamente nossos pais, mas também os idosos, o magistrado, educadores e pais espirituais. O reformador francês João Calvino, ao comentar sobre o quinto mandamento, destacou três expressões de honra — “reverência, obediência e reconhecimento” — e demonstra como o princípio de honra aos pais pode se estender a todos os pais: magistrados, anciãos, pais na fé, pedagogos. Em sua elaboração, Calvino condicionará essa obediência à obediência “no Senhor” (Ef 6.1).
Um ponto muito importante do mandamento é que a honra, o respeito e a consideração começam no coração. A reverência aos pais e às demais figuras de autoridade deve ser reflexo e evidência de nossa honra e reverência a Deus, em primeiro lugar.
Então, somos chamados a honrar nossos pais. Isso inclui nossos pais na fé. Inclui homens e mulheres de Deus que carregam nos ombros arqueados e na cabeça branca os anos de experiência e vida que acumularam.
Lemos ainda em Levítico 19.32: “Diante das cãs te levantarás, e honrarás a presença do ancião, e temerás o teu Deus. Eu sou o SENHOR”. E textos como Provérbios 16.31 e 20.29 reforçam o ensino das Escrituras que os mais velhos devem ser honrados. Este princípio está aí porque normalmente os mais velhos estão associadas à experiência, à sabedoria, ao acúmulo de conhecimento, à desilusão e ao realismo. Na Bíblia, o ancião é tratado como um reservatório da tradição, da história das famílias, como o arquivo vivo de uma sociedade que vive por meio da tradição oral. Os velhos são mestres e ensinadores no meio do povo.
A influência da fé cristã no mundo antigo cumpriu o bom papel de levar este princípio de vida adiante. As sociedades que preservam o valor de respeitar seus idosos costumam ser prósperas e muito bem organizadas.
É preciso reconhecer, todavia, que nem todo idoso é sábio e um modelo para os outros. Temos exemplos de homens já velhos nas Escrituras que se envolveram em pecados grosseiros e é possível que alguns homens e mulheres velhos preservem padrões muito imaturos ou se vejam envolvidos em pecados feios. Por isso, associar a maturidade à idade pode ser um erro. O autor austríaco do século XIX, Hugo Hoffmanstall, em sua obra O livro dos amigos, disse: “Crianças precoces e velhos imaturos há bastantes em certos estados em que o mundo por vezes se encontra”. O poeta português Antero de Quental fez um duro desagravo a um rival seu, homem já velho, dizendo: “Levanto-me quando os cabelos brancos de V. Exa. passam diante de mim. Mas o travesso cérebro que está debaixo e as garridas e pequeninas coisas que saem dele, confesso, não me merecem admiração […]. A futilidade num velho desgosta-me tanto como a gravidade numa criança. V.Exa. precisa menos cinquenta anos de idade ou, então, mais cinquenta de reflexão.”
Mas percebo com preocupação um certo movimento antivelho em nossos dias, e nossos arraiais evangélicos não estão imunes a esta atitude, pelo contrário. O afã para afastar os mais experientes do centro das ideias e das discussões está mais e mais forte. A internet é o espaço onde isso se manifesta com maior força (talvez porque lá os grupos que agem assim se retroalimentam). Tal atitude é às vezes velada, às vezes explícita; às vezes despercebida, outras, intencional; mas é real.
Uma autocrítica que possamos considerar para a geração mais antiga é que tem-nos faltado habilidade para falarmos a esta geração mais jovem, chegarmos neles com paciência e graça e os alcançarmos no lugar e condição em que estão. Mas isto é outro assunto.
O ponto é que tenho visto muitos jovens e outros não tão jovens assim – mas muito sintonizados com essa nova abordagem, buscando seu lugar de fala, sua plataforma, seu papel no ensino e seu desejo de mostrar que têm uma voz, uma opinião, uma ideia que precisa prevalecer, que são sensíveis às novas causas e demandas que a sociedade coloca diante da igreja e que podem contribuir; mas há um problema: os velhos pastores, teólogos e professores que têm posição distinta ainda estão vivos ou, aqueles que já morreram, ainda exercem uma influência incômoda. Precisam ser silenciados. Sinto nessa atitude algo semelhante ao jovem que pediu ao seu pai ainda vivo “sua parte na herança” (Lc 15.12).
Além disto, é preciso dizer que muitos desses que buscam ocupar os espaços dos velhos ainda não têm, eles mesmos, muita trajetória de vida, muito chão de igreja e muito o que oferecer, senão sua opinião e suas reclamações. As críticas, aliás, mormente chegam com o peso de uma bigorna e suscitam comentários de aprovação, mas é tudo muito ácido e muito virtual, com pouco ou nenhum fruto.
Os antigos, em particular pastores e líderes de destaque e que por décadas exerceram grande influência no pensamento cristão, na produção literária, na plantação de igrejas, na obra missionária, na fundação de escolas e editoras cristãs, no lançamento de fundamentos importantes da teologia para nossos dias, enfim, estão sendo agora medidos e avaliados por um grupo muito exigente de pessoas que mira seus canhões da internet em tudo que fizeram.
Alguns, como o Dr. John McArthur Jr., por exemplo, viveram tempo suficiente para serem alvo de controvérsia, de ataques e duras críticas por parte de gente proveniente da própria igreja cristã. Homens como R. C. Sproul, J. I. Packer, Wayne Grudem, John Piper para mencionar alguns dos “gringos” que abençoaram a igreja cristã em seu próprio país e cuja influência alcançou milhares de milhares no Brasil, agora estão debaixo de enorme escrutínio, de suspeita e ataques de todo tipo, alguns, inclusive, mirando em seu caráter.
Não é muito diferente com pastores brasileiros. Alguns colegas de minha geração ou da geração anterior à minha que estão ainda na labuta já foram cancelados várias vezes (eu mesmo que sou uma pessoa que trabalha mais nos bastidores já tive minha quota de cancelamento).
Não é raro, todavia, que essa postura dura e críticas para com os anciãos, geradas no ambiente superficial e pesado das redes sociais, tenham sua origem em pessoas que possivelmente jamais tiveram a oportunidade de trocar uma única palavra com seus alvos (os quais se tornam slogans ou uma ideia), nunca visitaram seus lares, não estiveram em suas igrejas ou conversaram com membros de suas igrejas e que raramente leram mais do que algumas linhas de seus escritos (provavelmente apenas os excertos que foram parar na internet) e, pior, chegam indistintamente nas pessoas, inclusive muitos neófitos, que no fim reproduzirão este procedimento, num loop sem fim, tornando tudo muito público, muito feio.
Para citar alguns poucos e mais familiares exemplos internacionais, destaco aqui J. I. Packer, Martin Lloyd-Jones e Iain Murray (este último, ainda vivo, já na casa de seus 90 anos), que redescobriram os puritanos nos anos 1940 e lançaram nova luz ao seu ensino. R. C. Sproul defendeu a inerrância bíblica nos anos 1970, e destacou com vigor e perseverança o ensino bíblico sobre a justificação pela graça mediante a fé e a santidade de Deus. John MacAthur Jr. resgatou e defendeu a doutrina do senhorio de Cristo na vida cristã nos anos 1980. John Piper ensinou sobre a alegria da vida pela fé e comunhão com Cristo nos anos 1990. O teólogo Wayne Gruden e John Piper enfatizaram o ensino bíblico sobre a dignidade do ser humano, homem e mulher, portadores da imagem de Deus, tendo cada um seu papel, harmônico e complementar definido por Deus na Revelação e na própria constituição física de cada um. Tedd Tripp ajudou milhares de pessoas a perceberem a importância de chegarmos ao coração de nossos filhos com a verdade transformadora da Palavra de Deus. Voddie Baucham que tem defendido o casamento (entre homem e mulher) e a criação e educação de filhos nos caminhos do Senhor.
A Escritura nos exorta a ser gratos pelos dons dele na vida da igreja e a reconhecer os benefícios da graça na vida daqueles que palmilharam caminhos difíceis e quebraram pedras mais duras que as nossas. Nossos anciãos na igreja são nossos pais na fé e merecedores de nossa honra, de levantarmos ante seus cabelos brancos.
Muitos de nossos velhos têm suas lutas, é verdade, têm seus pontos cegos, suas áreas de fracasso, suas contradições. Mas a realidade é que todos nós as temos. Afinal, estamos todos ainda do lado de fora do Éden. Nossos santos, assim como nós, têm pés de barro. Nossos velhos podem ter cometido erros em sua trajetória, em algumas de suas ênfases e até em certas omissões, mas o que fazemos é cobrir a sua nudez (Gn 9.23) e não expô-la ao espetáculo público, ao cancelamento e à chacota.
Uma coisa é combater a heresia, os falsos mestres, os charlatões da fé, os vendilhões do templo, os enganadores, os impostores — e estes estão aí, fazendo muito estrago. Outra é expor ao vitupério público e ao tribunal das redes sociais homens de Deus que porventura tenham falhado em algum ponto de seu ministério. E mesmo essa aferição das falhas ministeriais precisa de um juízo muito honesto e criterioso, o qual idealmente deveria acontecer no contexto pactual da comunidade local, e jamais nos poucos caracteres das redes sociais (pretendo escrever mais sobre isso, noutro artigo).
Machado de Assis vaticinou lá pelas tantas em sua Relíquias da Casa Velha que “não basta ter razão, cumpre saber tê-la”. Isto é sábio. É um bom princípio que o Senhor Jesus e seus apóstolos ensinaram. O propósito da disciplina é ganhar o pecador e não destruí-lo (Mt 18.15). Se temos de corrigir alguém, que seja para ganhar a pessoa. Se temos de prevenir erros, que seja pelo ensino propositivo, afirmativo e preventivo. Que as nossas exortações, preocupações e admoestações sejam temperadas com o respeito, a consideração e o amor, e que se deem no perímetro seguro da igreja, da conversa madura, da edificação. Senão, o que temos é a exposição de opiniões parciais e por vezes enviesadas, que podem estimular ódios e preconceitos a um público indistinto e sem nenhuma condição de promover mudanças saudáveis. Não é assim que fazemos as coisas.
Somos todos chamados a honrar os cabelos brancos, a ser gratos pelos dons de Deus para a igreja e a sentar aos pés de nossos velhos com reverência, respeito e deferência, como pais na fé que são. Isso ensinará também aos nossos filhos, ensinará nossas igrejas, ensinará a sociedade fora da igreja como a gente lida com as coisas: com o princípio da graça, do respeito, do perdão, da redenção e da piedade. Se essas virtudes não guiarem nosso zelo, tudo o que teremos a oferecer será ressentimento, amargura, vaidades e muita justiça própria.
Fazemos bem em lembrar que Deus também é referenciado na Palavra como “Ancião de Dias” (Dn 7.9) e sua sabedoria é muito mais decana que as de todos nós juntos.
Autor: Tiago Santos
Fonte: Voltemos ao Evangelho
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