Cinco e meia da manhã de um domingo gelado, e, Rosa[1] já estava no trem a caminho da igreja, daquele momento tão esperado. Os espaços vazios, o balanço suave do vagão e a tranquilidade incomum do horário, contrastavam com o coração irrequieto que Rosa trazia no peito e privilegiavam a lembrança que ela tinha daquela promessa que, no televisor antigo de sua casa durante a semana, ela havia testemunhado:
– Esteja presente no nosso culto da promessa neste domingo às 6 da manhã! Deus há de te colocar por cabeça, não por cauda! Chega de sofrimento! Entregue tudo no altar do Senhor e sua vida há de se transformar! Seja fiel, sacrifique tudo que puder no altar do Senhor, nós vamos orar por você e seta maligna alguma há de te atingir, nenhum flagelo, nenhuma doença, nada! Creia! Deus há de te proteger e proteger os seus! Deus há de te curar e curar os seus! Venha!
O horário de pular da cama naquele domingo para Rosa não havia mudado do restante da semana, ao invés, no entanto, de estar indo para o trabalho, ela agora ia para a igreja, aflita, mas carregando ainda certa esperança. Rosa era empregada doméstica, trabalhava em três casas diferentes, morava na periferia, era filha única de um pai viúvo que sofria há anos com graves e constantes problemas de saúde, o que fazia dele um completo dependente dos cuidados da filha a quem ele tanto amava.
Rosa e o pai, seu Agenor [1], moravam sozinhos há anos. Ela raramente frequentava alguma igreja, pois, cumpria grandes jornadas de trabalho ao longo da semana para cuidar com mínima dignidade de seu velho pai adoentado. Rosa, no entanto, era interessada em Deus, gostava da igreja, gostava de ouvir a Palavra, sentia-se por ela confortada, e sempre buscava pregadores nos canais de televisão e nas estações de rádio enquanto cuidava dos afazeres do trabalho e de sua própria casa.
Algo no meio daquela semana, todavia, tinha saído drasticamente do controle. Estávamos no meio de uma pandemia e seu pai, que já era doente, apresentava sintomas daquela maldita peste que dizimava centenas de pessoas no país todos os dias. Rosa entrou em desespero! Não havia vaga alguma em hospital algum próximo de onde eles moravam. Tudo aconteceu muito rápido. A semana passava, o quadro se agravava, quando em meio a esse turbilhão, Rosa se deparou na televisão com a promessa daquele pastor. Era tudo que ela queria ouvir. Era tudo que aparentemente ela precisava. O encontro estava marcado, e tudo que Rosa tinha em mente eram aquelas palavras:
– […] Seja fiel, sacrifique tudo que puder no altar do Senhor, nós vamos orar por você e seta maligna alguma há de te atingir, nenhum flagelo, nenhuma doença, nada! Creia! Deus há de te proteger e proteger os seus! Deus há de te curar e curar os seus! Venha!
E ela foi. Assim como ela outras centenas de pessoas também foram. O lugar estava apinhado, protocolos sanitários eram flagrantemente ignorados; tudo que Rosa queria era entregar o que tinha, e receber aquela oração mágica; pelo menos era assim que ela imaginava, e assim aconteceu. Rosa entregou tudo. Recebeu a oração, viu reiterada a promessa na boca do pastor, e voltou com o coração aquecido e mais esperançoso; pelo menos até o próximo encontro com seu Agenor.
Sim, o otimismo e o coração aquecido de Rosa durariam apenas o trajeto de volta que ela faria para o dolorido reencontro com o pai. Naquele mesmo domingo o quadro de seu Agenor se agravaria irreversivelmente, seus pulmões sofreriam a aflição imposta pelo vírus impiedoso, que aproveitaria todas as comorbidades do velho homem para dizimar mais uma vida em meio a tantas outras que também seriam levadas naquele domingo trágico.
O rei estava nu! Rosa destroçada. Onde estava a promessa? Ela havia entregado tudo! Havia recebido a oração! Havia crido! Em meio à tensão da correria dos profissionais de saúde que ainda tentavam prestar os últimos socorros a seu Agenor naquela ambulância vermelha e barulhenta do SAMU em alta velocidade, Rosa se lembrava de tantas mensagens otimistas que já ouvira de bênçãos e prosperidade da boca de uma miríade de pastores midiáticos. Eles profetizavam que próximo estava um tempo de grande abundância, saúde e colheita para o povo de Deus! Tudo era muito confuso e fazia da cabeça e do coração da filha desesperada, um grande turbilhão. Quanta decepção.
Rosa não foi instruída a pensar no Evangelho a partir da eternidade. O que a ela foi apresentado ao longo de todos esses anos era uma mistura barata de pensamento positivo com pitadas de religiosidade vazia, desconectada da verdade. Rosa não conheceu o Evangelho, não foi apresentada à cruz, ao Cristo e à sua verdadeira obra de redenção. Rosa ainda não conhecia de perto aquela esperança que nos mantêm sãos mesmo em meio às agruras do luto. Rosa percebia muito de longe ainda aquela verdade de que todo o que crê no Cristo ainda que morra viverá, e de que não há presente maior que qualquer homem ou mulher poderá acolher ao longo da vida, do que receber o Filho de Deus como Senhor de sua própria história. Mesmo uma cura miraculosa acontecendo ao vivo bem defronte dos nossos olhos jamais poderá ser comparada ao dom de termos nossos pecados perdoados por Deus Nosso Senhor.
Não conhecer o Evangelho fez Rosa chorar amargamente a perda de um pai, sem a esperança da glória que consola os corações enlutados dos que creem. A morte de seu Agenor escancarava que aquela teologia triunfalista que ela ouvira durante tantos anos estava morta. A pandemia desnudou os falsos profetas que apontavam para um futuro de prosperidade terrena como algo inequivocamente atrelado à fé em Cristo. Suas falsas promessas e falsas teologias reducionistas forjaram um povo espiritualmente fraco e despreparado para a hora da angústia. Subtraíram do discipulado cristão uma das suas mais importantes características: a capacidade de olhar através da eternidade as calamidades que nos ferem no cotidiano da dura realidade.
É preciso que Rosa saiba que nas nossas igrejas já não existem mais altares, nem sacrifícios, porque o Cordeiro imolado de Deus foi o último, único e suficiente sacrifício para perdão de pecados e redenção de todo aquele que crê, e, a cruz foi o último altar no qual Deus Nosso Pai exibiu toda sua glória para todo aquele que quisesse ver. É preciso que Rosa saiba que sofrimentos atingirão sim os cristãos, mas que nós os superaremos todos, quer aqui, quer no final de todas as coisas, porque, em Cristo, somos mais do que vencedores. É preciso que Rosa saiba que não basta crer no milagre, no pensamento positivo, na meta ou no objetivo, é preciso que creiamos em Cristo somente, e basta. É preciso que Rosa saiba que ter fé apenas não é o suficiente, pois, a fé no objeto, no conceito, ou, na pessoa errada pode ser tão ou mais danoso do que simplesmente não crer em nada. Cristo e somente o Cristo basta. É preciso que Rosa saiba que não somos nós que temos de entregar tudo a Cristo para dele conseguirmos seu favor, mas que foi Ele quem entregou tudo a nós para que a Ele pudéssemos entregar todo nosso amor. É preciso que Rosa saiba que nem sempre tudo que aparentemente precisamos, verdadeiramente precisamos. E, é preciso que Rosa saiba que o Evangelho não é a noticia de que em Cristo seremos privados de toda dor, mas que em Cristo, por seu poder, superaremos toda a dor, para que a glória da graça de Deus possa reluzir onde quer que for.
A pandemia fez Rosa aprender uma dura lição sobre o triunfalismo que habitava inúmeras igrejas evangélicas brasileiras até poucos meses atrás. Seu Agenor se foi. Ele conhecia o Evangelho? Ele creu? Nunca saberemos. E Rosa? Até quando permanecerá tateando à escuridão? Como ouvirão se não há quem pregue? E de que adianta pregar se o que pregamos é uma falsificação barata da verdade eterna revelada nas Escrituras Sagradas? Hoje, sem o pai e ainda com um profundo vazio no coração, Rosa continua sua dura rotina de trabalho. Todavia, o rádio está desligado e a televisão fora da tomada. Quem há de ir por ela?
[1] As histórias de Rosa e seu Agenor não são reais.
Autor: Lucas Freitas
Fonte: Voltemos ao Evangelho
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