Devo confessar que minha relutância em tratar deste assunto se deve, antes de tudo, ao estigma que ele carrega. Todavia, senti-me desafiado a romper com meu próprio preconceito e a navegar nesses mares revoltos sob os auspícios da graça.
Haveria uma abordagem sobre o tema que não incorresse em legalismo, descambando numa tentativa humana de alcançar méritos diante de Deus através de seu desempenho? Estou convencido que sim. Urge buscarmos uma definição bíblica do que seja santidade, sem o pesado ranço religioso.
Ser santo não significa ser moralmente puro, perfeito ou dotado de uma espiritualidade madura. Os cristãos coríntios foram chamados por Paulo de “santificados em Cristo Jesus” e “santos, com todos os que em todo lugar invocam o nome de nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor deles e nosso” (1 Co.1:2). Não obstante, o mesmo apóstolo declara que não pode dirigir-se a eles como “a espirituais, mas como a carnais, como a meninos em Cristo”. Ele se justifica: “ainda sois carnais pois, havendo entre vós inveja, contendas e dissensões, não sois porventura carnais, e não andais segundo os homens?” (1 Co.3:1,3). Quem jamais imaginaria que pudesse haver santos invejosos, contenciosos, carnais? Mas, há! E como há! Todavia, sua imperfeição não os desqualifica como santos.
Ser santo também não é atribuir poderes especiais a alguém como geralmente se faz no processo de canonização da igreja católica.
Então, que significado haveria por trás do termo “santidade”?
A palavra hebraica traduzida por “santo” é Kadosh, que significa tão somente “separado”.
Sob o pretexto de santidade, a igreja cristã tem se separado literalmente do mundo à sua volta, e desenvolvido uma cultura de gueto. Confunde-se santidade com alienação.
Foi a partir de uma compreensão equivocada que os protestantes de origem holandesa impuseram o regime do Apartheid na África do Sul. Originalmente, os motivos não eram étnicos, mas religiosos. Os cristãos brancos não queriam correr o risco de ter sua fé diluída no fetichismo religioso dos africanos. Temendo ter a pureza de sua fé comprometida com o sincretismo, preferiram delimitar perímetros, onde brancos e negros viveriam segregados. Todos sabemos aonde isso levou.
Santificar tem muito mais a ver com “separar para” do que “separar de”. Pedro diz que somos geração eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o povo adquirido, para anunciar as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz (1 Pe.2:9). Ora, como anunciaremos algo àqueles de quem fomos separamos? Que propósito haveria de anunciar algo aos de nosso próprio grupo? Para que sejamos ouvidos, temos que nos entrosar, ter vida social, transitar entre os homens, não como alienígenas, mas como um deles. Somos santos, porém, não somos ETs.
Santificar é separar no sentido de distinguir, não de apartar. E distinguir é atribuir significado exclusivo. Portanto, pode-se afirmar que santificar a algo ou a alguém é reconhecer o lugar peculiar que deve ser ocupado por ele.
Veja, por exemplo, a recomendação de Pedro:
“Antes santificai em vossos corações a Cristo como Senhor; e estai sempre preparados para responder com mansidão e temor a todo aquele que vos pedir a razão da esperança que há em vós.” 1 Pedro 3:15
Se dermos à santificação o sentido que geralmente se dá, esta recomendação não faz qualquer sentido. Como poderíamos santificar Àquele que já é o Santo dos Santos? Como torná-lO ainda mais santo do que já é? Se santidade tem a ver com perfeição, como poderíamos tornar a Cristo ainda mais perfeito? Além de ser o cúmulo da presunção, seria um paradoxo. Como torná-lO mais puro? Ou atribuir-Lhe mais poder? Porém, se considerarmos a definição aqui apresentada, a recomendação de Pedro se revestirá de um sentido muito especial.
Santificar a Cristo como Senhor em nosso coração nada mais é do que reservar a Ele um lugar especial. Ainda que haja em nosso coração uma cadeira cativa para tudo quanto nos é caro, como por exemplo, para nossos familiares e amigos, o trono de nossa vida deverá ser exclusivo do Senhor. Ele sempre terá primazia em tudo. Atribuímos a Ele um significado distinto, que jamais poderá ser compartilhado com qualquer outro ser.
A santidade da vida
O mesmo apóstolo nos adverte:
“Mas, como é santo aquele que vos chamou, sede vós também santos em toda a vossa maneira de viver; porquanto está escrito: Sede santos, porque eu sou santo. E, se invocais por Pai aquele que, sem acepção de pessoas, julga segundo a obra de cada um, andai em temor, durante o tempo da vossa peregrinação, sabendo que não foi com coisas corruptíveis, como prata ou ouro, que fostes resgatados da vossa vã maneira de viver que por tradição recebestes dos vossos pais.” 1 Pedro 1:15-18
Repare nisso: santidade tem mais a ver com comportamento do que com compartimento. Corro o risco de ser mal interpretado aqui e julgado como legalista. Não se trata disso. Não se trata de submeter-se a um emaranhado de regras, e sim de ressignificar a vida. Quem se apercebe de quão santa é a vida jamais vai viver de maneira inconsequente. Nossos atos reverberam na eternidade. Fomos resgatados da nossa vã maneira de viver, herdada de nossos antepassados. Já não somos reféns do momento. Fomos conclamados a ir além, transcendendo o tempo e o espaço. Portanto, não faz mais sentido adotar como lema o refrão do samba que diz “deixe a vida me levar, vida leva eu…”
A santidade da vida reside em seu propósito. Nossa existência é muito mais do que um acidente de percurso. Fomos engendrados por Deus para o cumprimento de um propósito. Disponho-me a correr o risco de parecer piegas por esta afirmação. Mas, uma vida desprovida de propósito é igualmente desprovida de significado. Somos mais do que meros prontuários. Mais do que figurantes da trama da existência. Somos, cada qual, protagonistas, ou como diria Mandela, “capitães de nossa alma”.
Paulo expressou tal compreensão ao declarar: “Mas de nada faço questão, nem tenho a minha vida por preciosa, contanto que cumpra com alegria a minha carreira, e o ministério que recebi do Senhor Jesus, para dar testemunho do evangelho da graça de Deus” (At.20:24). Em outras palavras, Paulo se dispunha a enfrentar o martírio, se isso, de alguma maneira, contribuísse pela execução do propósito de sua existência. Afinal, só vale a pena viver por algo pelo qual se disponha a morrer. A santidade da vida, portanto, consiste no significado que lhe atribuímos. Quando já não estivermos aqui, os passos que houvermos dado continuarão a ecoar, a fragrância do sacrifício que houvermos feito seguirá sendo exalada pelos que nos sucederem nesta jornada.
Dispensamos altares! Não se atrevam a nos canonizar! Nem se preocupem em esconder nossas idiossincrasias e contradições sob o verniz de uma biografia idealizada. Que nossas vitórias sejam celebradas e nossos equívocos sirvam de advertência. Mas que todos saibam que buscamos viver plenamente em função do propósito do qual fomos imbuídos, apesar de, às vezes, nos deixarmos distrair.
A biografia de um santo não é um mapa para as próximas gerações, mas tão somente um registro de quem buscou fazer valer a pena sua estada neste planeta. Viveu e deixou viver. Encarnou sua missão. Gastou-se e deixou-se consumir pela chama da paixão que o movia.
Por Hermes Fernandes
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