Os discípulos estavam confusos. Receberam de Jesus uma orientação que parecia destoar de tudo quando lhes ensinara até ali. Da outra vez, quando os enviou a anunciar as boas novas, ordenou que não levassem suprimentos extras, nem bagagem. Apesar disso, nada lhes faltou. A lição aprendida era que aquele que os enviava deveria também bancá-los em sua missão. Porém agora, a instrução de Jesus parecia discrepante. Quem tivesse bolsa, deveria levá-la. Qualquer suprimento seria bem-vindo. Mas o que mais espantou-os foi a última sentença de Sua ordem: “Quem não tiver espada, venda a roupa do corpo e trate de comprar uma!”
O que? Espada? De quê Jesus está falando, afinal?
A seguir, Ele explica que era necessário que se cumprisse o que estava escrito: “Com os malfeitores foi contado”. Naquela época de dominação romana, cidadãos comuns eram proibidos de carregar espada. Somente os soldados podiam portá-la. Qualquer um que fosse flagrado munido de uma espada era considerado um subversivo, um insurgente, um elemento perigoso.
Imeditamente após a orientação de Jesus, os discípulos providenciaram duas espadas, pelo que Ele declarou ser suficiente.
Todos estavam muito apreensivos. Jesus já os avisara que Satanás pedira para peneirá-los como trigo. Embora a peneira fosse destinada a todos, Jesus declara que Sua maior preocupação era com Pedro. “Eu roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça. E tu, quando te converteres, fortalece teus irmãos” (Lc.22:32).
Três anos haviam se passado desde que Pedro aceitara o convite de segui-Lo. Não seria isso uma prova de conversão? Pedro demonstrou ter ficado chateado por ser exposto assim na frente dos colegas. Por isso, não conseguindo manter a boca fechada, vociferou: “Senhor,estou pronto a ir contigo para a prisão e para a morte” (v.33).
Mas Jesus o conhecia muito bem. Sabia que por trás daquela fachada de homem durão havia um menino inseguro, que poucas horas depois O negaria três vezes.
Duas espadas, doze homens (contando Jesus).
Pedro esparava apenas o momento certo para provar a todos que não apenas era convertido, mas que estava disposto a tudo para demonstrar sua lealdade a Jesus.
Depois de vencidos pelo sono, Jesus os acorda decepcionado, enquanto enxugava do Seu rosto o suor feito sangue. Esta cena se repetiu três vezes. O Mestre estava flagrantemente amargurado. O tempo se esgotara, e o traidor já se aproximava, guiando os guardas que O prenderiam, depois de identificá-lO com um beijo fortuito.
Em fração de segundos, dois de Seus discípulos que estavam munidos de espada, consideraram usá-las para defender seu Mestre. Porém, apenas Pedro tomou a iniciativa. Ele deve ter pensado: Que outra razão haveria para que Ele nos mandasse trazer espada, senão esta?
Na cabeça de Pedro, aquela poderia ser a chance pra se redimir. Todos finalmente reconheceriam seu valor. Sem titubear, puxou a espada da bainha, mirou-a no pescoço de um dos guardas, e errando a pontaria, decepou-lhe a orelha.
Era como se ele dissesse: – Eu não disse que era capaz de qualquer coisas pelo Senhor? Pois, eis a prova!
Ora, eram duas espadas. Uma estava com Pedro. E a outra? Com quem estava? Por que preferiu não usá-la?
Jamais saberemos quem foi o discípulo misterioso. Seu anonimato ficará guardado até a eternidade.
Os holofotes sempre apontam na direção de quem deseja aparecer. Fazer o que é certo, às vezes, nos condena a ter que nos contentar com a discrição. Na maioria das vezes, quem aparece é quem se precipta.
Pedro errou e errou feio. Não por causa da péssima pontaria (sua ferramenta de trabalho eram as redes de pesca, não a espada). Ele errou por querer provar sua lealdade através de um ato de heroísmo desmedido e irresponsável.
Seus olhos ainda estavam cheios de remela, por ter se deixado vencer pelo sono, enquanto Jesus suava gotas de sangue. Agora queria bancar o herói.
Em vez de um elogio dos lábios de Jesus, Pedro ouviu uma dura repreensão: “Embainha a tua espada, pois todos os que lançarem mão da espada à espada morrerão. Ou pensas tu que eu não poderia agora orar a meu Pai, e ele me mandaria imediatamente mais de doze legiões de anjos?” (Mt.26:52-53).
Ingênuo é quem pensa que pode impressionar a Deus, saindo em Sua defesa. Ora, Deus não carece que O defendamos.
Para Jesus, herói não é quem puxa a espada, mas quem compartilha a dor do outro, e sabe chorar com os que choram. Ele jamais Se deixou enganar por rompantes humanos. O que desembainha a espada quando o sangue está quente é o mesmo que negará conhecê-lO quando o sangue esfriar.
Há, todavia, algo que precisamos aprender com este episódio.
Nem sempre devemos lançar mão daquilo que está ao nosso alcance. Assim como Pedro tinha uma espada ao alcance da mão, Jesus tinha milhares de anjos à Sua disposição. Bastava uma voz de comando e eles viriam para socorrê-lO. Então, por que não recorreu a eles? Porque o mais importante não era um livramente momentâneo, ou dar uma demonstração de poder e autoridade, mas cumprir o propósito para o qual fora enviado pelo Pai.
Pecar é desviar-se do propósito. É buscar uma tangente. É usar o que está ao alcance de nossas mãos para fazer as coisas do nosso jeito.
Pecar não se limita a quebrar regras morais ou éticas. É sobre isso que Paulo fala, ao declarar: “Todas as coisas me são lícitas, mas nem todas convêm” (1 Co.6:12a).
Que pecado haveria em usar a espada que o próprio Jesus ordenou que levassem? Não haveria nada de mal, do ponto de vista moral e ético, usar a espada em defesa de um amigo. Porém, isso contrariaria o propósito de Deus. Por isso, Jesus bradou: “Mete a tua espada na bainha! Não beberei o cálice que o Pai me deu?” (Jo.18:11).
Há, pelo menos, quatro elementos que compõe o cenário que nos induz ao pecado:
1 – Equipamento
2 – Desejo
3 – Oportunidade
4 – Justificativa
Se a espada está na minha bainha, o que me impede de usá-la? Se dispomos do equipamento para pecar, e este foi dado ou permitido pelo próprio Deus, então, por que nos privar de usá-lo?
Nosso corpo está devidamente equipado para a prostituição. E são ítens de fábrica! Como se não bastasse o “equipamento”, temos também o desejo. Como lidar com a libido? Como controlar o impulso que vem de dentro? O trabalho que o diabo tem é o de catucar a onça com vara curta. O mal está latente em nós. Paulo chega a uma conclusão terrível: “Eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum. Com efeito o querer está em mim, mas não consigo realizar o bem. Pois não faço o bem que quero, mas o mal que não quero, esse faço (…) Pois segundo o homem interior, tenho prazer na lei de Deus, mas vejo nos meus membros outra lei que batalha contra a lei do meu entendimento, e me prende debaixo da lei do pecado que está nos meus membros” (Rm.7:18-19,22-23).
Portanto, temos o equipamento e o desejo necessários para pecar. Falta-nos dois outros elementos: a oportunidade e a justificativa.
Satanás se encarrega de criar tais oportunidades. Foi a isso que Jesus chamou de “peneirar”. O cenário é armado. Nossos apetites instigados. A espada parece pronta pra ser desembainhada. Porém, nos esbarramos com a nossa consciência. Como convencê-la de que aquilo é razoável? E se não a convencermos, como driblá-la pra que não se interponha em nosso caminho?
Agora mesmo, enquanto escrevo estas linhas, tenho em minha dispensa uma caixa de coca-cola zero. Com a sede que estou sentindo, bastara levantar-me, dirigir-me à cozinha, encher um copo de gelo, abrir uma das latas, e saciar-me. Tenho o equipamento, o desejo, a oportunidade, e também uma boa justificativa. Eu sei que coca-cola faz mal à saúde. Mas aquela é coca zero. Não tem calorias. Que mal tem? Está ali, disponível, pronta pra ser consumida. Porém, se eu parar pra ler o que está escrito na lata, verei que ela é zero nas calorias, mas não é zero no sódio. São 40 mg. de sódio. Pra quem andou tendo problema com pressão sanguínea, não é uma boa pedida. Sem contar o corante, o gás, e outros componentes daquela inofensiva lata de refrigerante. Na verdade, quando resolvi comprar coca zero em vez de coca regular, o que eu estava tentando era driblar minha consciência. É como se estivesse tentando sanar aquele velho problema expressado na canção de Roberto Carlos: Tudo o que eu gosto é ilegal, imoral, e ainda por cima, engorda.
Será que existe “pecado zero”? Ou pecado light?
O que seria pior, entregar meu corpo a uma relação adúltera ou acessar sites pornográficos? O que seria menos danoso à saúde espiritual, usar minha língua para mentir ou para fofocar? Usar minhas mãos para roubar ou para esmurrar alguém?
Só há uma maneira de vencer a lógica e o assédio do pecado: Fitar nossos olhos em Jesus, que pelo gozo que Lhe estava proposto resistiu a todas as tentações, suportou a cruz, desprezou os escárnios, abriu mão de usar de Suas prerrogativas divinas, e Se rendeu completamente à vontade do Pai (Hb.12:1-3).
Ele poderia ter descido da cruz, mas não desceu. Poderia ter rogado ao Pai para que Lhe enviasse miríades de anjos para socorrê-lO, mas não o fez. Poderia ter transformado pedras em pães, e assim, saciado Sua fome, mas Se negou a fazê-lO. Poderia ter pulado do pináculo do templo, e assim, provado a todos que era quem dizia ser, mas não o fez. De onde Ele tirou forças para resistir a tudo isso? Do gozo que Lhe estava proposto. As contingências não eram capazes de distraí-lO do alvo. O propósito do Pai se sobressaía em cada passo que dava. Por isso, jamais preocupou-Se em provar nada a ninguém.
Ele preferiu o caminho da discrição, e não da auto-exaltação. E todo aquele que, mesmo tendo a espada ao alcance da mão, prefere mantê-la na bainha em vez de agir por contra própria, receberá d’Ele o galardão.
Texto do Hermes Fernandes raptado do Genizah
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